segunda-feira, 14 de março de 2016

9º ano - Enterro de pobre - 14/03/2016

ENTERRO DE POBRE
Eliane Brum

Não há nada mais triste do que enterro de pobre. Porque o pobre começa a ser enterrado em vida. Quem diz é Antonio, um homem esculpido pelo barro de uma humildade mais antiga do que ele. Um homem que tem vergonha até de falar e, quando fala, teme falar alto demais. E quando levanta os olhos, tem medo de ofender o rosto do patrão apenas pela ousadia de erguê-los. Quem diz é Antonio Antunes. Ele acabara de sepultar o caixão do filho cujo rosto desconhece. O bebê de 960 gramas que morreu ainda no ventre da mãe. Antonio quis espiar a face do filho por um momento, mas a funcionária que foi buscar acriança na geladeira não deixou. Antonio tinha comprado uma roupinha de sete reais no centro de Porto Alegre para que o filho não fosse sepultado nu como um rebento de bicho. Mas não pôde vesti-lo. Restou a Antonio o caixãozinho branco que ninou nos braços até a cova número 2026 do Campo Santo do Cemitério da Santa Casa.
Quando a terra cobriu a cova rasa do filho, o pai soube que seu coração permaneceria insepulto. Porque Antonio Antunes descobriu naquele momento que uma cova rasa em um caixão doado, semeado em um cemitério de lomba, seria o destino dele, dos filhos que sobreviveram e dos netos que ainda estão por vir. Como foi a sina dos seus pais e dos seus avós antes dele. E foi ao alcançar o sopé do Campo Santo, depois de enterrar o filho sem nome, que Antonio pronunciou a sentença com a cabeça baixa e a chama dos olhos extinta pelas lágrimas. E por um rosário de sofrimentos que é muito capaz de ter começado ainda antes da descoberta do Brasil. Antonio Antunes disse:
-Esse é o caminho do pobre.
E disse com tal dor, com tal desesperança, que a frase açoitou o cemitério da pobreza. Porque uma frase só existe quando é a extensão em letras da alma de quem a diz. É a soma das palavras e da tragédia que contém. Se não for assim, é só uma falsidade de vogais e de consoantes, um desperdício de som e de espaço. E foi com tal dor que Antonio a pronunciou que até o sabiá que cantava do outro lado do muro silenciou, como se adivinhasse que a rase de morte era a vida de um homem.
Esse texto poderia acabar aqui, porque tudo já estaria dito. Mas às vezes é preciso contar uma história de mais de um jeito para que seja entendida por inteiro.
Não há nada mais triste do que enterro de pobre porque não há nada pior do que morrer de favor. Não há nada mais brutal do que não ter de seu nem o espaço da morte. Depois de uma vida sem lugar, não ter lugar para morrer. Depois de uma vida sem posse, não possuir nem os sete palmos de chão da morte. A tragédia suprema do pobre é que nem com a morte escapa da vida.
Foi isso que Antonio Antunes, o abatedor de árvores, compreendeu. E foi isso que terminou de arrebentá-lo. Porque era só o começo e porque não tinha fim. Apenas repetição. Porque homens como Antonio nascem e morrem do mesmo jeito. E, nesse sentido, o bebê que não viveu apenas economizou tempo, abdicando do hiato entre todas as formas de morte reservadas a ele na vida.
Para entender o fim, é preciso compreender o início. Antonio deixou o cemitério sem dinheiro para o ônibus da volta. Como não tinha para o da ida. Conduzido pela cunhada que o hospedava na capital, porque Antonio veio de uma cidade da região carvoeira. Ele descascava eucalipto numa sexta-feira quando a mulher sentiu a quentura do sangue escorrendo pelas pernas. Ela velava pela saúde da filha de seis anos, uma meninazinha que jamais caminhou, quando avisou a moça do hospital do que se passava no ventre. Foi despachada para casa, com a explicação de que não era nada.
O sábado mal tinha nascido quando Antonio carregou a mulher de volta à casa da saúde. No final da manhã, quando pouco tinha sido feito, Antonio venceu sua humildade atávica e ameaçou chamar a polícia. Então exportaram os dois a Porto Alegre, onde chegaram tarde demais. Salvaram a mãe, o bebê estava morto. Desde quando, não se sabe. No domingo, o filho de cinco anos, que como a irmã nunca caminhou, desembarcou da ambulância para a UTI de um hospital da capital. Descobria-se que estava com pneumonia quando há dias era tratado para outra coisa. E lá continua até hoje, com o pai duelando no saguão contra a morte.
A segunda-feira mal havia nascido quando Antonio foi cuidar do enterro de um, despistando a morte que já rondava o outro. Passou a segunda-feira entre o hospital e o cartório, mais de uma viagem de ida e mais de uma de volta, porque no hospital esqueceram o carimbo e a assinatura do médico para o atestado de óbito. E tudo isso quilômetros a pé, porque dinheiro para a passagem não tinha. E tudo isso de estômago vazio, porque dinheiro para o almoço não tinha. E tudo isso com a cunhada que há 15 dias perdera seu próprio bebê nascido morto. Com a cunhada que há 15 dias já tinha sepultado seu próprio filho no mesmo Campo Santo. E entre a segunda e a terça-feira, apenas uma refeição de arroz com repolho.
Nada se encerrou para Antonio Antunes quando chegou ao sopé do morro do cemitério e pronunciou a frase de sua vida. Acabara de sepultar o filho que dificilmente morreria se o pai não fosse pobre. Em um caixão doado, numa cova emprestada, no campo de lomba do único cemitério que acolhe pobre em toda a capital do estado. E que só por isso já merece a gratidão eterna de todos os Antonios.
Nada se encerrou para Antonio porque ele sabe que em breve estará de volta. E será tudo como foi. Como sempre foi, na morte como na vida. Deixa para trás o filho sem nome, sepultado numa cova rasa, sem padre e sem for. Porque a cova de pobre tem menos de sete palmos, que é para facilitar o despejo do corpo quando vencer os três anos do prazo. Então é preciso dar lugar a outro pequeno filho de pobre por mais três anos. E assim sucessivamente há 500 anos.
Debaixo de cada uma das mais de duas mil cruzes semeadas na terra fofa do Campo Santo há uma sina como a de Antonio. Para entender o resto da história que ainda virá é preciso conhecer o que é a morte do pobre. É necessário compreender que a maior diferença entre a morte do pobre e a do rico não é a solidão de um e a multidão do outro, a ausência de flores de um e o fausto do outro, a madeira ordinária do caixão de um e o cedro do outro. Não é nem pela ligeireza de um e a lerdeza do outro. A diferença maior é que o enterro de pobre é triste menos pela morte e mais pela vida.

ATIVIDADE
1) Sublinhe no texto os períodos que evidenciam paralelismo sintático.
2) Qual é o tempo da narrativa “enterro de pobre”? Justifique sua resposta.
3) Qual sentido subjaz à afirmação demarcada em negrito no texto? Encontre também na narrativa outra afirmação que se articule com a demarcada em negrito.

4) À vista do texto “Enterro de pobre”, de Eliane Brum, e do documentário assistido em sala, escreva um texto argumentativo problematizando a pobreza como violação aos direitos humanos.

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