O Inferno de Disney
(Fernanda Torres, Folha de S. Paulo, 17/02/2012)
A Disney é um conceito apavorante de
infância organizado em um sistema angustiante de filas
Por doze anos recusei levar meu filho à
Disney. Uma convicção estética inarredável orientava a minha negação. Nessas
férias, porém, uma viagem ao México com escala em Miami amoleceu meu coração de
mãe.
No dia 24 de janeiro do fatídico ano de
2012, abandonei os maias e a esplendorosa península do Yucatán para entrar em
um avião rumo à Orlando. A temporada de cinco dias na Flórida foi comparável
aos círculos de sofrimento de "A Divina Comédia", de Dante.
Como Deus ora pelos inocentes, meu rebento
menor, de três, caiu com 39 graus de febre no aeroporto de Cancún. A milagrosa
virose o deixou de molho nas primeiras 72 horas de aflição na América, enquanto
eu e o maior adentrávamos as profundezas da terra onde os sonhos se tornam
realidade.
O Limbo, primeiro círculo de penitência,
se apresentou na forma de montanhas-russas colossais que comprimem os sentidos
a forças G inimagináveis. Deixei meus neurônios serem prensados contra a parede
do crânio em loopings cadenciados, até ser cuspida tal e qual um zumbi
agastado, tomado por abobamento crônico.
As máquinas medievais de martírio causam
náusea, vômito e enxaqueca.
Para os que preferem sofrer ao rés do
chão, simuladores provocam a mesma sensação de abismo sem saírem do lugar em
que estão.
Na sétima hora do dia, enquanto era
sugada, no lugar da chupeta, por uma Maggie Simpson descomunal, eu já não
falava e nem me mexia. Caí dura no resort de golfe, "wonderland" da
terceira idade muito frequente na região.
A Flórida é o último refúgio dos que
viveram até a aposentadoria.
Abri o olho e reneguei assistir a tormenta
das baleias cativas nos tanques do Sea World. Atrás de motivos para ser
castigada, fui arrastada às compras por um furacão chamado luxúria.
Usufruímos o céu nublado da Universal da
tarde seguinte. O ar de quermesse do parque vazio, o clima ameno e o Harry
Potter nos fizeram crer na alegria infantil dos americanos. Driblamos bem a
comida intragável, servida em porções individuais que alimentariam tribos
inteiras. O jejum é dádiva quando se encara as aves inchadas a hormônio e o
teor transgênico das lanchonetes. Orlando é a cidade campeã da obesidade
mórbida; o Lago de Lama dos que sucumbiram à gula.
A última alvorada foi dedicada à Disney. O
sol brilhou no sábado de inverno, atraindo a multidão bíblica que lotou os
milhões de metros quadrados de hotéis, zoológicos e parques temáticos;
interligados por rodovias, hidrovias e ferrovias futuristas.
A Disney é um conceito apavorante de
infância organizado em um sistema angustiante de filas. É o ante-inferno dos
indecisos que aguardam em caracóis indianos uma satisfação que nunca chega.
Você anseia para ter o direito de aguardar
em pé, agarrada à democrática senha que só amplia a espera. A jornada se esvai
em uma azucrinante administração de tickets. A condenação à eterna expectativa
seria até suportável, não fosse o suplício sonoro.
Como vespas a picar os tímpanos, a voz
aguda das musiquinhas enjoadas, os "cling", "cleng",
"glom" das engenhocas de ferro e a proliferação de musicais da
Broadway, encabeçados pelo grande show do castelo da Cinderela, são de perder a
razão. E mesmo durante o safari, única esperança de silêncio ecológico, o
timbre de buzina da guia aspirante à atriz vinha pinçar os nervos.
A comparação entre a delicadeza do Caribe
mexicano e a artificialidade embalada em plástico de Orlando foi um choque e
tanto.
Antes de partir, visitei o paraíso. Um
pântano na zona rural povoado por crocodilos, peixes e pássaros semelhante ao
gigantesco charco que Walt Disney adquiriu há décadas atrás.
Em paz, no meio da lagoa virgem, me
perguntei o porquê da zona urbana daquele lugar manifestar um prazer masoquista
tão arraigado.
Talvez seja culpa pelo excesso de ofertas
nos supermercados, pela invenção do papel higiênico felpudo, do "super
size" tudo, dos veículos alcoólatras e das cidades sem pedestres. A
insustentável fartura social se penitencia tomando sustos em trem fantasmas
mirabolantes.
Não é diversão, é dívida cristã. A Disney
nasceu na Idade Média.
01) Tendo em vista o texto acima, quais são as características que se pode depreender do gênero “crônica argumentativa”?
02) Apresente o significado das palavras a seguir:
a) Res-do-chão
b) Luxúria
c) Timbre
d) Masoquista
e) Suplício
f) Azucrinante
g) Sucumbir
h) Cadenciado
i) Quermesse
j) Rebento
03) Qual é o paraíso que a cronista visitou antes de partir?
04) Por que a cronista afirma que a “Disney nasceu na Idade Média”?
05) Qual nome se dá para as palavras "cling", "cleng", "glom", apresentadas na crônica?
06) Identifique as intertextualidades presentes na crônica de Fernanda Torres.
07) Tanto a crônica “O Inferno de Disney” quanto o parque “Dismaland” apresentam quebra quanto ao estereótipo do parque da Disney. Relacione os dois textos e justifique sua resposta.
i) Quermesse
j) Rebento
03) Qual é o paraíso que a cronista visitou antes de partir?
04) Por que a cronista afirma que a “Disney nasceu na Idade Média”?
05) Qual nome se dá para as palavras "cling", "cleng", "glom", apresentadas na crônica?
06) Identifique as intertextualidades presentes na crônica de Fernanda Torres.
07) Tanto a crônica “O Inferno de Disney” quanto o parque “Dismaland” apresentam quebra quanto ao estereótipo do parque da Disney. Relacione os dois textos e justifique sua resposta.
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