ENTERRO DE POBRE
Eliane Brum
Não há nada mais triste do que enterro de pobre. Porque o
pobre começa a ser enterrado em vida. Quem diz é Antonio, um homem esculpido
pelo barro de uma humildade mais antiga do que ele. Um homem que tem vergonha
até de falar e, quando fala, teme falar alto demais. E quando levanta os olhos,
tem medo de ofender o rosto do patrão apenas pela ousadia de erguê-los. Quem diz
é Antonio Antunes. Ele acabara de sepultar o caixão do filho cujo rosto
desconhece. O bebê de 960 gramas que morreu ainda no ventre da mãe. Antonio
quis espiar a face do filho por um momento, mas a funcionária que foi buscar
acriança na geladeira não deixou. Antonio tinha comprado uma roupinha de sete
reais no centro de Porto Alegre para que o filho não fosse sepultado nu como um
rebento de bicho. Mas não pôde vesti-lo. Restou a Antonio o caixãozinho branco
que ninou nos braços até a cova número 2026 do Campo Santo do Cemitério da
Santa Casa.
Quando a terra cobriu a cova rasa do filho, o pai soube
que seu coração permaneceria insepulto. Porque Antonio Antunes descobriu
naquele momento que uma cova rasa em um caixão doado, semeado em um cemitério
de lomba, seria o destino dele, dos filhos que sobreviveram e dos netos que
ainda estão por vir. Como foi a sina dos seus pais e dos seus avós antes dele.
E foi ao alcançar o sopé do Campo Santo, depois de enterrar o filho sem nome,
que Antonio pronunciou a sentença com a cabeça baixa e a chama dos olhos
extinta pelas lágrimas. E por um rosário de sofrimentos que é muito capaz de
ter começado ainda antes da descoberta do Brasil. Antonio Antunes disse:
-Esse é o caminho do pobre.
E disse com tal dor, com tal desesperança, que a frase
açoitou o cemitério da pobreza. Porque uma frase só existe quando é a extensão
em letras da alma de quem a diz. É a soma das palavras e da tragédia que
contém. Se não for assim, é só uma falsidade de vogais e de consoantes, um
desperdício de som e de espaço. E foi com tal dor que Antonio a pronunciou que
até o sabiá que cantava do outro lado do muro silenciou, como se adivinhasse
que a rase de morte era a vida de um homem.
Esse texto poderia acabar aqui, porque tudo já estaria
dito. Mas às vezes é preciso contar uma história de mais de um jeito para que
seja entendida por inteiro.
Não há nada mais triste do que enterro de pobre porque
não há nada pior do que morrer de favor. Não há nada mais brutal do que não ter
de seu nem o espaço da morte. Depois de uma vida sem lugar, não ter lugar para
morrer. Depois de uma vida sem posse, não possuir nem os sete palmos de chão da
morte. A tragédia suprema do pobre é que nem com a morte escapa da vida.
Foi isso que Antonio Antunes, o abatedor de árvores,
compreendeu. E foi isso que terminou de arrebentá-lo. Porque era só o começo e
porque não tinha fim. Apenas repetição. Porque homens como Antonio nascem e
morrem do mesmo jeito. E, nesse sentido, o bebê que não viveu apenas economizou
tempo, abdicando do hiato entre todas as formas de morte reservadas a ele na
vida.
Para entender o fim, é preciso compreender o início.
Antonio deixou o cemitério sem dinheiro para o ônibus da volta. Como não tinha
para o da ida. Conduzido pela cunhada que o hospedava na capital, porque
Antonio veio de uma cidade da região carvoeira. Ele descascava eucalipto numa
sexta-feira quando a mulher sentiu a quentura do sangue escorrendo pelas
pernas. Ela velava pela saúde da filha de seis anos, uma meninazinha que jamais
caminhou, quando avisou a moça do hospital do que se passava no ventre. Foi
despachada para casa, com a explicação de que não era nada.
O sábado mal tinha nascido quando Antonio carregou a
mulher de volta à casa da saúde. No final da manhã, quando pouco tinha sido
feito, Antonio venceu sua humildade atávica e ameaçou chamar a polícia. Então
exportaram os dois a Porto Alegre, onde chegaram tarde demais. Salvaram a mãe,
o bebê estava morto. Desde quando, não se sabe. No domingo, o filho de cinco
anos, que como a irmã nunca caminhou, desembarcou da ambulância para a UTI de
um hospital da capital. Descobria-se que estava com pneumonia quando há dias
era tratado para outra coisa. E lá continua até hoje, com o pai duelando no
saguão contra a morte.
A segunda-feira mal havia nascido quando Antonio foi
cuidar do enterro de um, despistando a morte que já rondava o outro. Passou a
segunda-feira entre o hospital e o cartório, mais de uma viagem de ida e mais
de uma de volta, porque no hospital esqueceram o carimbo e a assinatura do
médico para o atestado de óbito. E tudo isso quilômetros a pé, porque dinheiro
para a passagem não tinha. E tudo isso de estômago vazio, porque dinheiro para
o almoço não tinha. E tudo isso com a cunhada que há 15 dias perdera seu
próprio bebê nascido morto. Com a cunhada que há 15 dias já tinha sepultado seu
próprio filho no mesmo Campo Santo. E entre a segunda e a terça-feira, apenas
uma refeição de arroz com repolho.
Nada se encerrou para Antonio Antunes quando chegou ao
sopé do morro do cemitério e pronunciou a frase de sua vida. Acabara de
sepultar o filho que dificilmente morreria se o pai não fosse pobre. Em um
caixão doado, numa cova emprestada, no campo de lomba do único cemitério que
acolhe pobre em toda a capital do estado. E que só por isso já merece a
gratidão eterna de todos os Antonios.
Nada se encerrou para Antonio porque ele sabe que em breve
estará de volta. E será tudo como foi. Como sempre foi, na morte como na vida.
Deixa para trás o filho sem nome, sepultado numa cova rasa, sem padre e sem
for. Porque a cova de pobre tem menos de sete palmos, que é para facilitar o
despejo do corpo quando vencer os três anos do prazo. Então é preciso dar lugar
a outro pequeno filho de pobre por mais três anos. E assim sucessivamente há 500 anos.
Debaixo de cada uma das mais de duas mil cruzes semeadas na
terra fofa do Campo Santo há uma sina como a de Antonio. Para entender o resto
da história que ainda virá é preciso conhecer o que é a morte do pobre. É
necessário compreender que a maior diferença entre a morte do pobre e a do rico
não é a solidão de um e a multidão do outro, a ausência de flores de um e o fausto
do outro, a madeira ordinária do caixão de um e o cedro do outro. Não é nem pela
ligeireza de um e a lerdeza do outro. A diferença maior é que o enterro de
pobre é triste menos pela morte e mais pela vida.
ATIVIDADE
1)
Sublinhe no texto os períodos que evidenciam paralelismo sintático.
2)
Qual é o tempo da narrativa “enterro de pobre”? Justifique sua resposta.
3)
Qual sentido subjaz à afirmação demarcada em negrito no texto? Encontre também
na narrativa outra afirmação que se articule com a demarcada em negrito.
4)
À vista do texto “Enterro de pobre”, de Eliane Brum, e do documentário
assistido em sala, escreva um texto argumentativo problematizando a pobreza
como violação aos direitos humanos.