domingo, 31 de janeiro de 2016

9º ano - Invisibilidade Social - 01/02/2016

UMA VELA PARA DARIO 
Dalton Trevisan

Dario vinha apressado, guarda-chuva no braço esquerdo e, assim que dobrou a esquina, diminuiu o passo até parar, encostando-se na parede de uma casa. Por ela escorregando, sentou-se na calçada, ainda úmida de chuva, e descansou na pedra o cachimbo.
Dois ou três passantes rodearam-no e indagaram se não se sentia bem. Dario abriu a boca, moveu os lábios, não se ouviu resposta. O senhor gordo, de branco, sugeriu que devia sofrer de ataque.
Ele reclinou-se mais um pouco, estendido agora na calçada, e o cachimbo tinha apagado. O rapaz de bigode pediu aos outros que se afastassem e o deixassem respirar. Abriu-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe retiraram os sapatos, Dario roncou feio e bolhas de espuma surgiram no canto da boca.
Cada pessoa que chegava erguia-se na ponta dos pés, embora não o pudesse ver. Os moradores da rua conversavam de uma porta à outra, as crianças foram despertadas e de pijama acudiram à janela. O senhor gordo repetia que Dario sentara-se na calçada, soprando ainda a fumaça do cachimbo e encostando o guarda-chuva na parede. Mas não se via guarda-chuva ou cachimbo ao seu lado.
A velhinha de cabeça grisalha gritou que ele estava morrendo. Um grupo o arrastou para o táxi da esquina. Já no carro a metade do corpo, protestou o motorista: quem pagaria a corrida? Concordaram chamar a ambulância. Dario conduzido de volta e recostado à parede - não tinha os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata.
Alguém informou da farmácia na outra rua. Não carregaram Dario além da esquina; a farmácia no fim do quarteirão e, além do mais, muito pesado. Foi largado na porta de uma peixaria. Enxame de moscas lhe cobriu o rosto, sem que fizesse um gesto para espantá-las.
Ocupado o café próximo pelas pessoas que vieram apreciar o incidente e, agora, comendo e bebendo, gozavam as delicias da noite. Dario ficou torto como o deixaram, no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso.
Um terceiro sugeriu que lhe examinassem os papéis, retirados - com vários objetos - de seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficaram sabendo do nome, idade; sinal de nascença. O endereço na carteira era de outra cidade.
Registrou-se correria de mais de duzentos curiosos que, a essa hora, ocupavam toda a rua e as calçadas: era a polícia. O carro negro investiu a multidão. Várias pessoas tropeçaram no corpo de Dario, que foi pisoteado dezessete vezes.
O guarda aproximou-se do cadáver e não pôde identificá-lo — os bolsos vazios. Restava a aliança de ouro na mão esquerda, que ele próprio – quando vivo – só podia destacar umedecida com sabonete. Ficou decidido que o caso era com o rabecão.
A última boca repetiu — Ele morreu, ele morreu. A gente começou a se dispersar. Dario levara duas horas para morrer, ninguém acreditou que estivesse no fim. Agora, aos que podiam vê-lo, tinha todo o ar de um defunto.
Um senhor piedoso despiu o paletó de Dario para lhe sustentar a cabeça. Cruzou as suas mãos no peito. Não pôde fechar os olhos nem a boca, onde a espuma tinha desaparecido. Apenas um homem morto e a multidão se espalhou, as mesas do café ficaram vazias. Na janela alguns moradores com almofadas para descansar os cotovelos.
Um menino de cor e descalço veio com uma vela, que acendeu ao lado do cadáver. Parecia morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.
Fecharam-se uma a uma as janelas e, três horas depois, lá estava Dario, à espera do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó e o dedo sem a aliança. A vela tinha queimado até a metade e apagou-se às primeiras gotas da chuva, que voltava a cair.

Texto extraído do livro "Vinte Contos Menores",  Editora Record – Rio de Janeiro, 1979, pág. 20.



Alagoano, Pereira tinha 23 anos e viajou de Maceió para trabalhar durante a temporada em Florianópolis. No domingo, 24, os salva-vidas o viram sendo perseguido por dois homens. Ele foi esfaqueado no rosto, nas costas e no abdômen pelos criminosos. Pereira não resistiu aos ferimentos.
A cena que envolveu o assassinato deixou outros comerciantes que trabalham na praia impressionados com o desdém da população. O corpo do vendedor permaneceu por duas horas na areia.
Matheus da Conceição Prado, 29 anos, vende água mineral em frente à guarita onde Pereira foi assassinado. Ele conta que as pessoas não demoraram a voltar ao lazer e ignoraram o corpo estirado na areia.
As mulheres estavam lá, passando bronzeador. As crianças brincando no mar. Pessoal pedindo coisas pra comer e beber. E ele ali, com uma cobertinha azul. Fui pra casa me sentindo mal. Poderia ser comigo, ninguém iria se importar.


EXERCÍCIOS

1. Retire do conto de “Uma vela para Dario” trechos que fundamentam a seguinte afirmação: “O narrador conta uma história urbana”.
2. Qual foi o último momento do conto em que Dario demonstra estar vivo?
3. Quais adjetivos você usaria para caracterizar as pessoas que se apossaram dos objetos pessoais de Dario­­­­­­­­­­­­­?
4. Em que momento do texto a atitude das pessoas em relação a Dario passa da mera curiosidade à degradação moral? 
5. O título do texto se refere ao gesto de um menino. Em sua opinião, o que difere esse gesto das atitudes das demais personagens do texto?
6. O conto de Dalton Trevisan e a reportagem compartilham uma mesma temática: a degradação da morte no ambiente urbano. Com base em seu conhecimento, escreva um parágrafo argumentativo que apresente a relação entre esses dois textos e a causa para essa problemática urbana.

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